Detecção de engano na justiça | Polígrafo como prova da defesa
O teste do polígrafo como pericial, como prova na justiça começou a utilizar-se no inicio do século vinte. Não só o detector de mentiras tem uma longa história na justiça, também foi um ponto de referência para provas científicas.
Como veremos, este teste de detecção de engano veio a ser uma referência para perícias científico legais, baixo a norma de “aceitação geral”.
É evidente que um teste do polígrafo atual tem pouco em comum com o teste de detecção de engano aplicado, faz agora quase 100 ano, em 1922 pelo Dr. William Marston que foi o primeiro considerado como pericial do polígrafo na justiça.
Teste de detecção de engano na justiça
(Estados Unidos vs. Frye) | O principio de “aceitação geral”

Em 1921 foi inventado o primeiro aparato do polígrafo por John Larson. No entanto, não foi este aparato que marcou um ponto de referência nas perícias científicas mas o teste de pressão arterial sistólica de detecção de engano que foi aplicada por o Dr. William Moulton Marston a 10 de junho de 1922.

O Dr. Marston era um membro recente do corpo docente da American University, em Washington, D.C., com um diploma de direito e um doutorado em psicologia em Harvard.
Em 1915, Dr. Marston começou a utilizar este método de detecção de engano e estava procurando uma forma de o divulgar. Essa oportunidade apresentou-se quando foi contatado pelos advogados de James A Frye, os juristas Richard Mattingly e Foster Wood. Frye tinha sido acusado de ter assassinado um médico, o Dr. Brown.
Frye foi inicialmente detido, a 21 de Agosto de 1921, por ter forjado o nome de um soldado num cheque de compensação do governo e admitido ter roubado um relógio e um anel de diamante de um vendedor de Indianápolis cujo táxi avariou. Durante o interrogatório destes casos, James A. Frye também disse ao inspetor Grant que o tiroteio com o Dr. Brown, sucedeu em autodefesa depois de o médico o ter atacado.
O acusado declarou ao inspetor Grant e aos detetives que ele foi ao consultório médico para obter uma receita. Comentou Frye:
Ele tinha apenas um dólar, e o médico disse que dois dólares era o preço da consulta. Brown, disse Frye, se recusou a aceitar a sua pistola como garantia pelo dólar extra. Declarou Frye que a situação escalou e o médico o derrubou, depois de tê-lo seguido do escritório até o corredor. Foi quando ele caiu, afirmou Frye, que ele disparou quatro ou cinco tiros contra o Dr. Brown.
No entanto, mais tarde, Frye se retractou de tal confissão dizendo que tinha acordado com o inspetor Grant repartir a recompensa de 1,000 USD que a família do Dr. Brown tinha oferecido para quem ajudasse a resolver o caso.
Em 1922 William Marston aplicou o teste de pressão arterial sistólica de detecção de engano para testar se Frye estava realmente dizendo a verdade sobre a sua falsa confissão ao inspetor Grant.
Comentou Marston:
“Eu dei a ele um teste de engano na prisão do distrito. Ninguém poderia ter ficado mais surpreendido do que eu ao descobrir que a história final de inocência de Frye era totalmente verdadeira! Sua confissão ao assassinato de Brown foi uma mentira do começo ao fim” (1)

No entanto, quando os advogados de Frye tentaram colocar o Dr. Marston na bancada do tribunal para explicar os seus resultados nos testes de detecção de mentiras, o juiz McCoy se opôs. O juiz também negou o pedido do advogado para permitir que Marston faça uma manifestação em tribunal aberto. O julgamento durou quatro dias.
O júri deliberou três horas e depois voltou com um veredicto de culpado. Mas, em vez de considerar Frye culpado de assassinato em primeiro grau, um crime que pedia a pena de morte, eles o consideraram culpado de assassinato em segundo grau, um crime que trouxe uma sentença de prisão perpétua.
Mais tarde Marston colocou:
“Para Jim Frye, o teste sem dúvida salvou sua vida. Nenhum júri poderia deixar de ser influenciado pelo conhecimento de que a história de Frye havia sido comprovada como verdadeira pelo detector de mentiras”. O fato do júri ter reduzido a acusação de assassinato em primeiro a segundo grau falava por si mesmo.” (2)
O mais importante de este caso no entanto, é que mesmo se o teste de pressão arterial sistólica de detecção de engano foi um predecessor rudimental do atual teste do polígrafo, este teste ficou na história por várias razões.
Em primeiro lugar porque foi a primeira vez que um teste de detecção de engano era utilizado na justiça. No entanto, o mais importante foi a doutrina que se impôs devido a este caso com respeito a testemunhas periciais. Isto se deve ao pronunciamento do Tribunal de segunda instância que estudou o caso Estados Unidos vs. Frye.
Em efeito, em segunda instância o Tribunal de Apelações do Distrito de Columbia decidiu sobre o recurso de James Frye em 1923.
Comentou o Juiz Van Orsdel:
Em algum lugar nessa zona crepuscular [entre os estágios experimentais e demonstráveis da descoberta] a força evidencial da causa deve ser reconhecida, e enquanto os tribunais se esforçam em admitir testemunhos de especialistas baseados num princípio ou descoberta científica bem reconhecida, a coisa de que a dedução é feita deve ser suficientemente estabelecida para obter aceitação geral no campo específico em que pertence. (3)
Portanto, esta doutrina da “aceitação geral” foi utilizada para todo tipo de pericias científicas apresentadas nos tribunais dos Estados Unidos desde este caso, desde 1923.
No entanto ficou para a história como a primeira vez que o polígrafo foi utilizado como pericial na justiça.
Da “aceitação geral” a “Rule 702”
Porquê o polígrafo pode ser pericial na justiça?
Uns 70 anos depois de Estados Unidos vs. Frye, em 1993 para ser mais exato, outro caso veio a modificar a doutrina de “aceitação geral” que era a norma utilizada pelos tribunais americanos.
Em 1975 o congresso dos Estados Unidos promulgou as Regras Federais para Provas, Regra 702. Esta regra vinha substituir a regra da “aceitação geral” das periciais.
A Regra 702 diz o seguinte:
Regra 702. Depoimento de peritos.
(Testimony by expert witness)
Uma testemunha qualificada como especialista por conhecimento, habilidade, experiência, treinamento ou formação pode testemunhar na forma de uma opinião ou de outra forma se:
(a) o conhecimento científico, técnico ou outro conhecimento especializado do especialista ajudar o julgador do fato a entender as provas ou determinar um fato em questão;
(b) o testemunho é baseado em fatos ou dados suficientes;
(c) o testemunho é o produto de princípios e métodos confiáveis; e
(d) o especialista tenha aplicado de maneira confiável os princípios e métodos aos fatos do caso.
A Regra 702 veio dar uma estrutura clara para periciais científicas, técnicas.
No entanto, foi unicamente em 1993 que o Tribunal Supremo confirmou que a Regra 702 estava por cima da doutrina de “aceitação geral” no caso Daubert vs. Merrel Dow Pharmaceuticals Inc.
Aqui os juízes decidiram que a Regra 702 estava por cima da doutrina de “aceitação geral” e que devem ser considerados os critérios expostos na Regra 702.
A grande diferencia é que uma técnica, ciência, não precisa necessariamente de ter uma aceitação consensualizada para ser apresentada em tribunal. Sempre e quando cumpra com as condições descritas na Regra 702.
Esta nova norma (Regra 702) também aplica ao teste do polígrafo.
A evolução do instrumento do polígrafo e da técnica do teste
O instrumento do polígrafo também sofreu uma evolução tecnológica que tem pouco em comum com as técnicas utilizadas no inicio do século passado.
Desde que em 1921 John Larson inventou o primeiro instrumento do polígrafo, diferentes avances tecnológicos e de metodologia foram implementados ao que hoje é conhecido como teste do polígrafo.
William Moulton Marston utilizava um método que era conhecido como o teste de pressão arterial sistólica de detecção de engano. Realmente, o seu método não corresponde à verdadeira definição do que é um polígrafo, já que um polígrafo significa poli=muitas, grafo=escrituras. O método que utilizava Marston nem registrava diferentes atividades fisiológicas, nem gravava essas leituras.

John Larson inventou um sistema que cumpria com estas condições, por isso John Larson é conhecido como o pai do polígrafo.
John Larson inventou um sistema capaz de registrar a atividade respiratória e cardiovascular. Este instrumento se encontra hoje no Museu Smithsonian, Washington D.C.

Em 1938, Leonarde Keeler acrescentou ao instrumento do polígrafo à medição da condutância galvânica da pele. Os instrumentos do polígrafo modernos continuam registrando estas variáveis até o dia de hoje, atividade respiratória, cardiovascular e suor.
O instrumento veio melhorando com os anos, passando de ser um sistema aparatoso e pesado a algo mais eletrônico e leve.
Com o desenvolvimento informático e tecnológico estes instrumentos são hoje em dia muito mais fáceis de transportar e utilizar.
No entanto, a aplicação do polígrafo na sociedade unicamente se fortaleceu porque a ciência que acompanha o instrumento melhorou considerávelmente durante os anos.
O polígrafo é hoje em dia utilizado na justiça porque a ciência que acompanha a sua aplicação teve uma evolução muito mais importante que o instrumento em si.
Em efeito, o progresso mais importante foi impulsado por profissionais que perceberam que era necessário uma metodologia estandardizada para poder chegar a um resultado fiável.
Importantes contribuidores foram John E. Reid, que implantou um sistema estandardizado de perguntas.

Mais tarde Cleve Backster, que era um pesquisador científico antes de ser um examinador do polígrafo, desenvolveu a sua teoria de testes de Zona. Também criou uma forma numérica de chegar a um resultado.
Estes dois profissionais foram figuras fundamentais para o teste que hoje em dia é aplicado.
Hoje em dia, diferentes profissionais trabalham para aperfeiçoar o processo e a estandardização da metodologia.
O teste do polígrafo tem diferentes normas ASTM (American Standards for Testing and Materials). Estas normas são um compendio das melhores práticas desenvolvidas pela APA (American Polygraph Association) e NCCA (National Center for Credibility Assessment).
Hoje em dia um perito psicofisiólogo deve utilizar unicamente técnicas validadas para garantir de esta forma uma fiabilidade contrastada.
O teste do polígrafo nas justiças internacionais

Como vimos os primeiros casos judiciais onde se utilizou o polígrafo sucederam nos Estados Unidos. Diferentes cidadãos americanos foram pioneiros neste setor e portanto é normal que seja nos Estados Unidos onde por primeira vez se introduziu o teste do polígrafo para casos judiciais. Quando algo nasce com o objetivo de detectar a mentira, uma das aplicações naturais é a justiça.
Mesmo se o caso Estados Unidos vs. Frye dificultou o seu uso durante muitos anos, a sua utilização tem-se vindo a reforçar, não só nos Estados Unidos mas também noutros países.
É verdade que desde o inicio do século atual a utilização do teste do polígrafo na justiça tem-se visto acelerada. Isto se deve a diferentes razões, mas a mais importante é a perfeição da técnica e ergo dos resultados obtidos pelo teste psicofisiológico.
Estados Unidos:
Alguns casos nos Estados Unidos nos quais foram utilizados e aceites, o teste do polígrafo:
- United States v. Piccinonna 885 F.2d 1529 (11th Cir. 1989).
- United States v. Posado (5th Cir. 1995) WL 368417
- United States v. William Galbreth, 908 F. Supp. 877, 64 USLW 2260, 43 Fed. R. Evid. Serv 585, 4 Oct 1995.
- United States v. Richard Ridling, 350 F. Supp. 90 (E.D. Mich 1972)
- United States v. David Crumby, 895 Fed Supp 1354 (DC AR. 1995).
- United States v. Lee, 315 F.3d 206 (3d Cir. 2003).
- United States v. Locke, 482 F.3d 764 (5th Cir. 2007). .
- United States v. Stoterau , 524 F.3d 988, 1003 (9th Cir. 2008).
- Ohio v. Sahil Sharma. CR 06-09-3248 (2009).
- People v. Wilkinson (122 Cal.Rprt.2d 703).
- Ohio v. Sims, 52 Ohio Misc. 31; 369 N.E. 2d 24; (1977).
- State v. Valdez, 371 P.2d 894 (Arizona, 1962).
- State v. Dorsey, 539 P.2d 204 (New Mexico, 1975).
- People v. Kenney, 3 N.Y.S.2d 348, 167 Misc. 51
- People v. Daniels, 422 NYS2d. 832, 102 Misc 2d 540 (1979).
- People v. Glenn Battle
- People v. Vernon, 391 NYS 2d 959 (1977).
- Patterson v. State, 633 S. W. 2d 549
- Kumho Tire Company, Ltd, et al. v. Patrick Carmichael, 526 U.S. 137 (1999).
- William Davis v. The People of the State of New York.
Como podemos ver, o teste do polígrafo nos Estados Unidos tem um recorrido importante e é uma prática que dependendo do caso pode ser a única defesa para uma pessoa acusada.
Bélgica:
Na Bélgica o tribunal de segunda instância confirmou o uso do polígrafo por perito judicial. Na sentença (Cour de cassation: Arrêt du 15 février 2006 (Belgique). RG P051583F), no qual foi aceite pelo juiz a utilização da informação conseguida no teste do polígrafo para inculpar ao réu.
Concluiu o tribunal superior que os direitos fundamentais do réu não tinham sido infringidos.
Em Fevereiro de 2020 foi votada uma lei que enquadra a utilização do polígrafo na instrução criminal. Esta lei pode ser vista neste link (em francês) ou neste link (em francês).
Canada:
No Canada, diferentes casos na justiça também utilizaram o teste do polígrafo. Alguns exemplos são:
- Lamothe v. General Accident Insurance Company, Court of Quebec, REJB 1998-10865.
- Hotel Central Victoriaville Inc. V. Reliance Insurance Company, Quebec Court of Appeal, REJB 1998-06721.
- Vetements Paul Allaire Inc. v. La Citadelle, compagnie d’assurances generales, Quebec Superior Court, REJB 2000-19632.
- Fraternity des Policiers et Policieres de Longueuil, Inc. v. Ville de Longueuil, Province de Quebec, Canada, Quebec Labour Court. 30.03.2001
Inglaterra:
Na Inglaterra o teste do polígrafo é utilizado na justiça para seguir, vigiar condenados que lhes é outorgado liberdade condicional.
Programa que não só tem uma aceitação na Inglaterra mas que muitos Estados nos Estados Unidos implementam.
É impossível dar uma lista exaustiva de todos os casos nos quais foi utilizado o teste do polígrafo nos diferentes países, mas como se pode ver é uma pericial que tem um certo recorrido na justiça.
E na justiça brasileira, é o polígrafo utilizado como pericial na justiça?
Para um artigo completo sobre o uso do polígrafo na justiça brasileiro por favor ir a seguinte página.

Como podemos ver o teste do polígrafo está por celebrar os 100 anos de utilização na justiça. É verdade que tanto o instrumento como a técnica se teve que adaptar para obter uma aceitação mais geral. No entanto, a evolução da ciência e da metodologia tem vindo a paliar estes problemas de infância.
É verdade também que mesmo se esta técnica viu o seus inícios no século passado, foi realmente neste século que conheceu um amadurecimento suficiente para sua aplicação com garantias na justiça.
Em Polígrafo Brasil realizamos diferentes testes psicofisiólogos forenses que foram introduzidos como pericial e tratados pela justiça.
Outro aspecto é que não existem muitos profissionais qualificados no Brasil para sua aplicação.
Ademais, toda tecnologia tem um tempo de aceitação diferente. Isto é ainda mais o caso quando aplicado a um sistema como a justiça que cuida zelosamente procedimentos que sabem que funcionam e que desconfia de métodos desconhecidos.
No entanto, e isso faz da justiça uma área tão apassionante, existe sempre esse sentido universal de justiça que faz que se adapta a novas realidades.
Com certeza, o teste psicofisiológico forense, teste do polígrafo faz e fará parte dessas ferramentas (pericial) habituais que ajudarão à justiça a ser mais justa.
Referências:
◄(1) Marston, William, The Lie Detection Test, (NY: Richard R. Smith, 1938), p. 71.
◄(2) Marston, William, The Lie Detection Test, (NY: Richard R. Smith, 1938), p. 76
◄(3) Frye v. United States, 293 F. 1013 (D.C. Cir. 1923)